ANÁLISE | Santa Sangre - 1989 por Bruno Petter
Santa Sangre: Ou Uma Psicose vista de dentro.
“Estendo as minhas mãos a ti: a minha alma tem sede de ti como uma terra
seca ... Ensina-me o caminho que devo seguir, pois a ti elevo a minha alma.
- Salmos, 143.6,8”
Acredito que a melhor forma de começar a falar sobre um dos meus filmes mais amados, Santa Sangre (1989) seria contando sobre sua gestação, como esse filme foi gestado na mente de dois diretores e como ele foi parar nas mãos de um homem que se denomina um Psicomago.
Roberto Leoni definiu o rascunho original do filme baseando-se no tempo que passou trabalhando como bibliotecário em um hospital psiquiátrico e posteriormente dividiu tal ideia com Claudio Argento. Argento e Leoni decidiram que o diretor que mais se encaixava na ideia inicial do roteiro seria Alejandro Jodorowsky, um diretor franco-chileno que havia feito grande sucesso com A Montanha Sagrada (1973) e que havia encabeçado o projeto de produção do filme baseado no livro de ficção científica Duna, embora tal projeto nunca tenha sido terminado (mas ainda assim o projeto Duna viveu como referências em vários filmes como Star Wars ou Alien, mas isso é outra história e tomo estar me alongando demais). Jodorowsky aceitou um encontro para debaterem a produção do filme, mas somente se ele se encontrasse apenas com quem teve a ideia original do filme, Roberto Leoni.
Os dois diretores se encontraram em Paris e Jodorowsky questionou Leoni sobre quando ele teve a ideia inicial para o roteiro, ao revelar Jodorowsky ficou desapontado, disse que na noite que o roteiro foi concebido por Leoni ele estava dormindo, portanto o Anjo das Estórias passou por ele em Paris e ao encontrar Jodorowsky dormindo foi para Roma, onde encontrou Leoni, para Jodorowsky aquele roteiro era originalmente destinado a ele. Os dois trocaram ideias sobre o filme e Jodorowsky trouxe também para o roteiro a história de Gregorio Cárdenas Hernández, conhecido como o Estrangulador de Tacuba, e foi somente então que é parido, nas mentes de três diretores no mínimo excêntricos e igualmente geniais o filme Santa Sangre.
Mas por que eu contei essa história? Bom, sinceramente eu devo admitir que não tenho muita certeza, acho que principalmente por ela mostrar todo o clima de estranheza e surrealismo que envolve o filme, mesmo este não sendo um filme surrealista, Jodorowsky tem essa peculiar habilidade, de transformar em surreal toda a realidade que toca, de mostrar o absurdo do mundo em que vivemos. Jodorowsky foi chamado para produzir um filme slasher, que na época podemos referenciar filmes como O Iluminado (1980), Halloween (1978), Psicose (1960), dentre outros. Jodorowsky sai do lugar comum e nos entrega uma experiência completamente diferente daquilo a que estamos acostumados. Sem mais delongas, vamos ao filme:
O filme conta a história de Fênix, que inicialmente se encontra internado em uma instituição psiquiátrica, onde tem dificuldade de se comunicar com outras pessoas. No decorrer da história conhecemos episódios que aconteceram na sua infância. Fênix vivia com sua mãe, Concha (ou Vulva, em espanhol) e seu pai, Orgo, em um circo, neste espaço ele trabalhava como mágico e adestrador de um grande elefante, sendo cuidado por diversos personagens como um palhaço e um anão. Um dia Fênix vê seus pais tendo relações sexuais e como estamos acompanhando a narrativa pelos olhos de uma criança, vemos a mãe de Fênix não gemendo de prazer, mas gritando, como se estivesse com dor, para a criança não existe diferença, e no dia seguinte ao evento, o elefante começa a apresentar sinais de doença, até eventualmente morrer. O elefante no filme pode ter inúmeros significados, podendo ser a representação da infância ou da inocência de Fênix.
Entre as amizades do circo, Fênix contava com uma menina muda, uma mímica, que tinha mais ou menos a mesma idade que ele e se apresenta como seu primeiro interesse amoroso. Importante destacar que além de trabalhar no circo, a mãe dele era uma devota religiosa a uma santa sem braços, que se tratava de uma menina que havia sido mutilada após um crime sexual, tendo seus braços decepados pelos criminosos, sendo então chamada de Santa Sangre. Em dado momento da história, seus pais se desentendem por conta de uma outra integrante do circo, a mulher tatuada e ambos acabam se matando, ele presencia partes das cenas de dentro de seu trailer, e vê sua mãe mutilada, sem os braços.
A partir daí, a história pula para Fênix como jovem adulto em uma instituição psiquiátrica onde afirmava ser uma ave, e não mais um ser humano, Fênix se recusa a se ver como humano, possivelmente para ele é mais fácil viver em um mundo de fantasia em que este não tem conexão com seu pai, nem mesmo a conexão de serem da mesma espécie.
Como parte do tratamento, o psiquiatra do hospital decide incentivar a autonomia ao deixar que Fênix vá junto com outros pacientes, que são portadores de Síndrome de Down, para o cinema. Estes se desviam do local de destino quando um jovem gangster se oferece para vender cocaína e levar os jovens aos prostíbulos em troca do dinheiro que gastariam no cinema. E este é um dos momentos que demonstra a transgressão e o progressismo do trabalho de Jodorwsky, ele trata os jovens como o que de fato eles são, pessoas normais, pessoas com desejos, que não são puros e inocentes, mas portadores de desejos, desjos de prazer, seja ele proveniente do sexo ou do uso de drogas, Jodorowsky não se acovarda ao mostrar a realidade, mesmo que até hoje ainda tenhamos dificuldade de ver portadores de Síndrome de Down como sujeitos portadores de desejo.
Fênix acaba fugindo do hospital após descobrir onde se encontra a mulher tatuada e acaba matando ela e outras mulheres que sejam de alguma forma sedutoras como ela era. Fênix percebia-se como as mãos de sua mãe fazendo isso, vivendo dentro de uma alucinação e vingando-se pela morte dela. Mas lembremos que Jodorowsky se recusa a nos mostrar os fatos como estes o são, vemos tudo a partir das percepções distorcidas pela fantasia psicótica de Fênix. Vemos também que Fênix pintava suas vítimas de branco antes de as enterrar, uma tentativa de replicar a segunda mulher em sua vida por quem se apaixonou, a menina muda que fazia truques como mímica, que usava maquiagem completamente branca. Fênix, como Norman Bates, tenta matar metafórica e literalmente seu desejo por outras mulheres, assim como seu desejo pela mímica de sua infância.
Fênix é tirado da sua alucinação ao reencontrar sua amiga muda do circo. Ao se encontrar novamente com a Mímica, aos poucos luta contra a ideia de que seus braços são de sua mãe e que precisa matá-la, Fênix inclusive demonstra uma fixação pelo personagem ficcional do Homem Invisível, desejando se tornar este, apresentando um desejo de auto extermínio, uma tentativa de se apagar em detrimento a sua mãe. Eventualmente Fênix descobre que sua mãe era apenas uma fantasia dentro de sí, uma alucinação, da mesma forma que Norman Bates incorporava a figura da mãe para matar as jovens incautas que se hospedavam em seu hotel, Fênix tem suas mãos tomadas pela sua mãe, já falecida, matando todas as mulheres por quem este se apaixona.
Ao longo do filme percebe-se que Fênix possui uma estrutura psicótica, pois este ao lidar com a morte de sua mãe produz uma realidade alternativa, trazendo ideias de punições associadas a religiosidade da mãe e ao mesmo tempo matando toda mulher que busca ocupar o lugar de “mulher de sua vida” preso eternamente na metáfora edípica. Conforme Silva e Filha (2016, p. 232) “(....) na psicose a realidade é rejeitada, o eu se afasta, transforma a realidade a partir de traços de memória e são acrescentados outros elementos”.
Este, ao matar suas vítimas as pintava de branco antes de enterrar, uma tentativa de matar também a paixão infantil que teve com a mímica muda que trabalhou no circo, para ele nutrir sentimentos por outra mulher seria como assumir o papel de adúltero, papel que seu pai assumiu ao trair a mãe de Fênix com a mulher tatuada. Ao encontrar com a mulher que “causou” a morte de sua família, Fênix passa a ver sua mãe como uma alucinação e a entender que por ela não ter braços deve assumir seu lugar vingando-se por ela.
Fênix apresenta uma estrutura de eu fragilizada, ao perder a mãe perde parte importante de quem era, não se reconhece mais como pessoa, tanto que durante seu período de institucionalização este não se via mais como um ser humano, mas sim como uma ave de rapina, Silva e Filho (2016, p.231) trazem que quando o eu está deste modo “(...) as representações psíquicas vêm da memória carregada de desejo até chegar ao sistema perceptivo, produzindo assim a alucinação.”
É apenas quando começa a ter suas alucinações com a mãe viva que volta a assumir o papel de ser humano e busca trabalho fazendo aquilo que fazia antes, espetáculos circenses. Durante seu trabalho demonstra forte tendência a regressão, repetindo o que o pai faz, se vestindo com roupas muito similares e apresentando um show com arremesso de facas, quando encontra a primeira mulher por quem tem interesse, esta pede para ele demonstrar para ele seu número e Fênix acaba por matar a mulher sob influência de sua mãe que afirmava que ela “o havia corrompido com sua luxúria”, novamente outra referência ao caso de adultério de seu pai. Parte de suas alucinações também eram membros do circo de sua infância, os palhaços e o anão do circo, estes se apresentavam como ajudantes, outro símbolo demonstrando forte comportamento regressivo.
No final, ao destruir a fantasia de sua mãe, Fênix é preso pelos múltiplos assassinatos que (sua mãe) ele cometeu, os policiais se aproximam da casa com armas em punho ordenando que Fênix ponha suas mãos ao alto, e este obedece, olhando para suas próprias mãos e agindo pela primeira vez com elas por sua própria vontade, e não pela vontade de sua mãe.
Mas é claro que o diretor que se denomina como um psicomago não iria se limitar apenas a metáfora psicanalítica, devemos nos dedicar também a magia, e foi utilizando o livro O Caminho do Tarot (2016), escrito pelo próprio Jodorowsky, que tentei desenhar uma metáfora utilizando tais cartas.
Para quem não conhece, o tarot é uma forma divinatória, possuindo 22 arcanos maiores e 56 arcanos menores. Decidi me focar apenas nos arcanos maiores. Os arcanos maiores apresentam uma história sendo contada se postos em sequência, tal história começa no arcano 0, o Louco, que vai passando pelos outros arcanos até chegar no 22º, O Mundo, e recomeçando sua jornada após isto. Vou destrinchar quais cartas em sequêcia pude observar no filme, não me debruçando sobre os significados de cada carta:
0 - O Louco: Fênix internado no hospital psiquiátrico, nesse caso, literalmente o louco;
1 - O Mago: representado pelo próprio Fênix em sua infância, a analogia entre o mago e o mágico se torna forte;
2 - A Papisa: representada pela menina Mímica, seu desejo, a quem ele destina seu amor;
3- A Imperatriz: A mãe de Fênix, Concha, exercendo suas funções como sacerdotisa;
4 - O Imperador: O pai punitivo de Fênix;
5 - O Papa: O pai de Fênix cravando com uma faca uma tatuagem no peito do filho;
6 - Os Namorados: a traição do pai de Fênix com a Mulher Tatuada;
7 - O Carro: literalmente o carro do médico que leva Fênix na sua ida ao cinema, quando este reencontra a Mulher Tatuada quando adulto.
8 - A Justiça: O assassinato da Mulher Tatuada e o renascimento da mãe de Fênix;
9 - O Eremita: Fênix vagando pelo mundo sem destino, com suas vestes de mágico;
10- A Roda da Fortuna - Fênix Iniciando sua jornada como artista e mãos de sua mãe;
11 - A Força: O primeiro assassinato cometido pelas mãos da mãe de Fênix;
12 - O Enforcado: O pesadelo de Fênix, sua visão morrendo da mesma forma que o elefante, a metáfora de sua infância e do seu eu, morre. Fênix nota sua vontade de auto extermínio;
13 - O arcano sem nome (ou A Morte): a tentativa de suicídio de Fênix pelas mãos da mulher forte, Fênix entendendo que deve ser punido pelos crimes de sua mãe;
14 - A Temperança: A Mímica indo atrás de Fênix, é com a visão dela que ele começa seu processo de cura/separação da sua consciência com a de sua mãe;
15 - O Diabo: Fênix se entregando ao seu desejo, abandonando sua “obrigação” com sua mãe e indo atrás de seu prazer;
16 - A Torre: Queda da ilusão da mãe de Fênix, assim como a queda da ilusão de seus amigos do circo que não estão lá;
17 - A Estrela: Fênix se apropriando de suas próprias mãos.
Jodorowsky nos encanta com as possibilidades de interpretação de sua obra, as inúmeras analogias que podemos encontrar dentro de apenas um filme, assim como os debates e discussões sobre tais interpretações. A obra de Jodorowsky se mostra viva ainda, mesmo com o filme já possuindo 32 anos ele ainda pulsa e ainda vive dentro de nós, contanto que continuemos interpretando e revivendo constantemente sua obra.
REFERÊNCIAS:
JODOROWSKY, Alejandro; COSTA, Marianne. O Caminho do Tarot. Editora Campos, 2016.
SANTOS, Leonardo Carvalho; FILHA, Lêda Lessa Andrade. Psicose e Psicanálise: Observações sobre o Diagnóstico. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, 2016.
1 comentários
Uau!
ResponderExcluirQue enredo fascinante. Esse "universo" do mundo psiquiátrico é tão intenso, tão repleto de uma diversidade de sentimentos que assusta e emociona ao mesmo tempo.
E pelo que pude ler acima, há uma infinidade de camadas e isso é ainda mais maravilhoso de ser visto.
Com certeza, senti muita vontade sentir essa obra!
Beijo
Angela Cunha/O Vazio na flor